Seminário Aberto_ Carla Miguelote e Lúcia Ricotta

29 de novembro

Práticas artísticas e conceituais do arquivo:
insurgência, reapropriação e invenção no contemporâneo

29 de novembro 2023

18h00 | sala G107

 

No campo dos estudos literários da contemporaneidade, há uma ampla reorientação crítica descrita por alguns estudiosos como uma “virada arquivística”, que ganha relevo a partir da primeira década do século XXI. Pesquisadores da escravidão atlântica tratam os arquivos a partir da proposição foucaultiana de que há uma tensão entre o que foi dito e o que pôde ser dito nos documentos, nas declarações e instituições que decidiram sobre o conhecimento do passado. Ocorre, nesse contexto, um deslocamento essencial: uma reciprocidade, agora decisiva, entre desfiguração arquivística e afeto da/o pesquisadora/pesquisador. Esse é um ponto que tem se mostrado particularmente sensível em um panorama de reconfigurações dos arquivos na contemporaneidade, em especial em insurgências, procedimentos de reapropriação e contranarratividade que emergem em processos artísticos e literários. Nos livros Wayward lives, beautiful experiments: intimate histories of social upheaval (2019), de Saidiya Hartman, e A água é uma máquina do tempo (2022), de Aline Motta, ocorre um modo estratégico de usar documentos e fotografias, extraídos de arquivos públicos e privados, junto a uma intenção narrativa e a um trabalho com a visualidade e a intermidialidade. Nos dois livros, há uma fabulação com e contra o arquivo, apontando para metodologias de escrita e modos de contar histórias que se situam num campo expandido dos meios e das relações entre o “real”, o “histórico” e o “ficcional”. Ambas buscam os arquivos esparsos da escravidão e das populações afrodiaspóricas, lidando com os limites desses documentos – fotografias, jornais, documentos cartoriais, registros de cobradores de aluguéis, relatórios da delegacia de costumes, autos de prisão etc. Enquanto Aline Motta constrói uma história íntima das mulheres da sua própria família, marcadas pela herança da escravidão no contexto oitocentista do Rio de Janeiro, Saidiya Hartman utiliza uma vasta gama de material arquivístico para imaginar e recriar a vida de mulheres negras desconhecidas, jovens rebeldes que viveram nos guetos de Nova York e da Filadélfia no início do século XX. Saidiya Hartman é responsável pelo conceito de “fabulação crítica”, uma forma de “deslocar o relato preestabelecido e autorizado e imaginar o que poderia ter acontecido, o que poderia ter sido dito ou poderia ter sido feito”. Tal conceito serve-nos de norte para pensar o desafio de ambas, o de trabalhar com os arquivos sem repetir a sua violência, o apagamento da singularidade das vidas de mulheres negras.

*

Lúcia Ricotta Vilela Pinto é Diretora e Docente da Escola de Letras da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Professora visitante na Università Ca’Foscari Venezia (2019). Pós-doutora pelo Instituto de Estudos Literários da UNICAMP, em 2011-12, e pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, em 2012-13. É doutora em História Social da Cultura pela PUC-Rio (2002). Atualmente, coordena o Núcleo de Ficção e Teoria (NuFT) e o Laboratório de Crítica e Teorias na Contemporaneidade (LaCrite), da Escola de Letras. Entre suas produções recentes estão: em co-autoria com Carla Miguelote, “Linhagem, linguagem: fabulações do arquivo em A água é uma máquina do tempo”, Revista Texto Poético (2023), e “Lineage, language: Archival Fabulations in Water is a time machine”, Il Tolomeo. Rivista di studi postcoloniali (Ca’Foscari-2023), “Carta escrita por uma aluna de uma disciplina de historiografia literária justificando a recusa em ler um romance”, Revista Criação & Crítica (USP- 2023) e, em parceria com Anita Martins Moraes e Marcelo Moreschi, “Antonio Candido em debate: uma constelação de estudos críticos”, Revista Criação & Crítica (USP-2023).

Carla da Silva Miguelote é Professora Adjunta da Escola de Letras da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), da qual foi diretora entre 2020 e 2022. Coordenou os projetos de pesquisa “Palavra e imagem na arte contemporânea: o vídeo, a grande parataxe e o arquivo sem fundo” (2014-2020) e “Corpos dissonantes, escritas insurgentes: inflexões feministas na literatura e em outras artes” (2020-2023). Atualmente desenvolve uma investigação de pós-doutorado no Instituto de Literatura Comparada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Entre suas produções recentes estão, em coautoria com Lúcia Ricotta, “Linhagem, linguagem: fabulações do arquivo em A água é uma máquina do tempo“, Revista Texto Poético (2023), e “Lineage, language: Archival Fabulations in Water is a time machine”, Il Tolomeo: Rivista di studi postcoloniali (Ca’Foscari-2023). Publicou o livro de poemas Conforme minha médica (Confraria do vento, 2016) e a plaquete O mapa do céu na terra (Círculo de poemas, 2023). Dirigiu os curtas feministas Amiga oculta (2017), Qual imagem (2018) e Esguicho (2019), exibidos em mostras e festivais nacionais e internacionais.

Utilizamos cookies para proporcionar uma melhor experiência. Política de Privacidade